Crônica: A mulher que contava aviões

Rodrigo Alves de Carvalho

Ela costumava contar aviões após o entardecer.

Sentava-se numa cadeira de palha na área da casa quando o sol baixava e o azul do céu tornava mais escuro e ficava até um pouco antes de dormir, assim que as estrelas todas já deram o ar da graça e a lua, quando surgia, pairava no centro do céu. Ao avistar os pontinhos luminosos piscando no breu celeste, anotava mentalmente mais aviões em sua conta.

Ficava horas contando os aviões que cruzavam o espaço onde seu campo de visão conseguia enxergar. Preferia contar aviões pacientemente do que assistir novelas ou qualquer outro programa na televisão. Preferia contar aviões do que principalmente interagir com seu marido, que não gostava de contar aviões e ficava assistindo novelas.

Quarenta anos de casados e tudo o que se falavam era o necessário, não havia mais diálogos. Quando o marido estava no trabalho, ela cumpria seus deveres de dona de casa como já fazia há quarenta anos, e quando o marido chegava após o entardecer, ela contava aviões.

Dois filhos casados e três netos que correm pela casa nos almoços de domingos. Vovô e vovó perfeitos, carinhosos, brincalhões e especiais, a casa era contagiada pela alegria, porém, quando os netos e filhos vão embora à tardinha, vovô deita no sofá para assistir o Fantástico e a vovó em sua cadeira de palha conta aviões.

Quando o marido desliga a TV e vai para o quarto, ela para de contar aviões e compara os aviões que cruzaram o céu naquela noite com os aviões de ontem.

– Ontem passou mais aviões. – Pensa ela – mas pode ser também que eu tenha perdido alguns aviões naquela hora que fui ao banheiro. Amanhã vou confirmar.

E assim a mulher fazia seus afazeres domésticos ansiosa pela chegada do ocaso para poder contar aviões novamente e fazer a comparação do tráfego aéreo naquele pedaço de céu que conseguia enxergar da área de sua casa.

Já o marido que sabia que ela contava aviões não estava nem aí. Preferia ficar xingando políticos que apareciam no Jornal Nacional do que discutir com a esposa por ela ficar contando aviões.

E os dois viviam assim, ele trabalhava e assistia televisão, ela com seus afazeres domésticos e contava aviões. Já no domingo se transformavam em vovô e vovó.

Para ele isso estava muito bom, depois de quarenta anos de casados, não esperava muita coisa entre os dois.

Já para ela, mesmo conformada com a rotina dos últimos anos, ainda guardava dentro de si uma pequena esperança de que um dia o relacionamento poderia melhorar e o marido deixasse de assistir televisão para também com ela ficarem contando aviões.

Rodrigo Alves de Carvalho nasceu em Jacutinga (MG). Jornalista, escritor e poeta possui diversos prêmios literários em vários estados e participação em importantes coletâneas de poesia, contos e crônicas. Em 2018 lançou seu primeiro livro individual intitulado “Contos Colhidos” pela editora Clube de Autores.

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