Por RINALDO SEGUNDO*
O ano era 2023. Como tinha feito nos últimos vinte anos, estive em uma escola pública, onde dialoguei com os estudantes (o papo daquela manhã foi sobre abusos sexuais de adolescentes). Gosto dessas interações, vibrantes. Pintando em branco e azul, a tinta cheirava fresca. O prédio era novo e tinha dois andares. Com carteiras e lousas novas, a construção abrigava mais de uma dezena de salas de aula. Havia um refeitório, novinho, com mesas e cadeiras tão brancas que pareciam nunca terem sido usadas.
Como tenho feito nos últimos vinte anos, convidei-me a conhecer a biblioteca da escola no final do encontro. Disposta em uma sala de aula ampla, a biblioteca não tinha nenhum livro nas prateleiras. Aliás, não havia prateleiras. Os muitos livros ali eram didáticos, amontoados em um canto e cobertos por plástico. Seriam entregues aos alunos, imaginei, em um momento futuro. Cadeiras, sofás e pufes confortáveis, um tipo de mobília que seduz jovens leitores, também não havia. A minha experiência com a falta de bibliotecas e livros de literatura nas escolas é reiterada.
Um desgosto, expresso em números: mais de 18 milhões de estudantes brasileiros da rede pública de ensino estudam em escolas sem biblioteca. O número representa 52% por centos dos alunos matriculados em escolas de nível infantil, fundamental e médio. No ensino infantil, só 18% das escolas possuem bibliotecas; 23% das escolas públicas municipais têm bibliotecas, enquanto a porcentagem alcança 61% das escolas públicas estaduais.
O curioso é que, em 2010, foi aprovada a lei nº. 12.244. Uma lei simples, mas revolucionária. Estabeleceu o prazo de dez anos para a universalização das bibliotecas nas escolas públicas brasileiras. Cada biblioteca deveria contar, no mínimo, com um título de livro por aluno matriculado. O prazo para a implementação da universalização se estendeu para 31 de dezembro de 2025. Quem sabe!
Todos concordam que bibliotecas e livros são essenciais para o desenvolvimento de crianças e adolescentes, mas em um país cujo preço dos livros os tornam artigos de luxo, é preciso haver iniciativas mais agressivas para democratizar a leitura. Que tal um Bolsa livro, periódico e em espécie, para cada estudante brasileiro? Dos gastos nacionais, arrisco cravar o melhor custo-benefício.
É que a leitura estimula o cérebro, promove o raciocínio crítico e prepara as crianças para a resolução de problemas. Curiosidade, organização, assertividade, comedimento e foco são habilidades associadas à leitura na infância e na juventude. Muito do sucesso escolar e cotidiano posterior estará associado à leitura, pois, ao ler, o estudante analisa informações, faz conexões e tira conclusões. Enfim, desenvolve habilidades úteis à vida.
Mais de 18 milhões de estudantes brasileiros da rede pública de ensino estudam em escolas sem biblioteca.
A celebração
O ano é 2024. Mais de vinte e cinco mil novos títulos são lançados no mercado editorial brasileiro. Uma festa, com opções para todos os gêneros e gostos, dos livros de desenvolvimento pessoal e autoajuda aos literários, que contam histórias.
Enquanto os livros não literários são argumentativos e didáticos, as histórias querem entreter e almejam o belo através do uso de personagens e emoções. Vou me deter às histórias, que alcançam o leitor com sentimentos e pensamentos, desejos e valores; o leitor reagirá a elas com a sua subjetividade (a subjetividade envolve personalidade, autopercepção e relações sociais). Se cada leitor reage à mesma história de forma diferente, encantando uns e sendo rejeitada por outros é devido à subjetividade, uma espécie de Wi-Fi humana de percepção, identificação e julgamento.
Por causa da subjetividade, as histórias são apropriadas para abordar temas desconhecidos, desafiadores ou difíceis, gerando reflexão e empatia. Há muitos exemplos disso. No livro “Sapato de Salto”, Lygia Bojunga retratou em uma cena o abuso sexual de uma garotinha, personagem central da obra, enquanto em “A Filha Primitiva”, Vanessa Passos apresentou uma filha revoltada com a mãe por desconhecer o pai. Em “A palavra que resta”, Stênio Gardel contou a história de Raimundo, um homem que guardou uma carta, fechada, de seu grande amor, Cícero, por cinquenta anos. As diferentes expressões artísticas sempre trataram disso. Lembro agora da personagem Malu, do seriado Malu Mulher, uma mulher recém divorciada, após sofrer violência física do marido (era 1979, o divórcio havia sido recentemente legalizado no país). É difícil não se empatizar com tais personagens ao conhecer as suas histórias.
É a empatia do leitor o prêmio do escritor. Quando Charles Dickens, um crítico da pobreza trazida pela Revolução Industrial, publicou Oliver Twist, em 1838, e contou a história do protagonista submetido a indignos trabalhos infantis, ele quis revelar a inexistência de um sistema de proteção do trabalho infantil na Inglaterra. Um tema crítico à época, pois até crianças com cinco anos trabalhavam em fábricas (o próprio Dickens foi um trabalhador infantil). E como Oliver Twist era órfão como o Harry Potter, a empatia é ainda maior na obra de Dickens.
As histórias estimulam a empatia, essa qualidade de se colocar no lugar do outro, entendendo a sua razão de sentir e agir, compreendendo-o sem ranços pessoais, aperfeiçoando as relações humanas com menos julgamentos.
Eu jamais esquecerei uma cena que vivi com a minha saudosa e querida sogra, a Dona Leda. Vi os seus olhos brilharem, quando lhe falei do filme “O Sol é para Todos” (o inesquecível Gregory Peck ganhou o Oscar de Melhor Ator neste filme em 1962), baseado no livro de mesmo nome (“To Kill a Mockingbird”). A Dona Leda, que havia lido o livro na juventude, ainda se lembrava de Atticus Finch, o advogado idealista que cria dois filhos sozinho. Finch enfrenta a ira de uma comunidade inteira para defender os seus ideais, ao mesmo tempo que é um pai atencioso e gentil com os filhos. Conversando animadamente sobre os detalhes da história, a Dona Leda e eu mencionamos a justiça, a coragem e a prudência de Finch. Era o poder de um livro, e de uma boa história.
Com tantos títulos publicados, mais do que nunca a diversidade tem aparecido na literatura: a criança é estimulada a compreender o coleguinha autista (“Uma Mente Diferente”), o leitor é apresentado a relações coloniais (“Como Pássaros no Céu de Aruanda”, da cuiabana Paty Wolff), o leitor conhece as angústias de uma mulher casada dos anos cinquenta (“A Vida Invisível de Eurídice Gusmão”). Com tantos e tão diversos títulos publicados, essas obras precisam chegar às bibliotecas das escolas, conforme a idade dos estudantes. Elas promoveriam reflexão, e empatia com o próximo, talvez por toda a vida.
*Rinaldo Segundo é promotor de Justiça e atua, principalmente, na área de homicídios e crimes sexuais contra crianças e adolescentes, onde sente diariamente as emoções alheias refletidas em si. Formado em Economia e Direito, com mestrado em Desenvolvimento Sustentável (Harvard Law School), também é autor do recém-lançado livro de contos “Emoções: A Grandeza Humana” (Editora Labrador). Inspirada em sua vivência profissional, a obra expõe dramas sociais da atualidade e as emoções como ponto comum na experiência humana.
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