RETRATO DE UM CAPIAU POBRE O DOENTE

Frederico Lohmann

Me personagem nasceu no interior do estado, numa vilinha de menos de trezentos habitantes. A unidade de saúde mais próxima, um postinho de três cômodos, exigia uma caminhada de seis horas e o dentista, apenas o itinerante, com sua cadeira de madeira tocada com a força motriz da perna do prático. Esse era o retrato do interior do meu estado.

Cresci na lida, carpindo a mandioca, o milho e o pequeno pomar. Esse serviço era feito diariamente por meu pai, minha irmã e meus dois irmãos e minha mãe se encarregava do serviço doméstico, da criação e dos remendos constantes provocados pelas ferramentas de corte e carpina.

Nunca havia fartura. Quando tempo ajudava, a pequena sobra era aplicada nos consertos da tapera, na compra de uma ou mais galinhas ou bacorinhos ou na reposição dos itens pessoais, sempre em fim de uso.

Os anos assim se passaram, perdi meu pai, minha mãe, minha irmã casou e mudou e meus dois irmãos emigraram. Nunca sobravam recursos para contratar ajudantes e produzíamos com a regra de que uma mão lava a outra entre os sitiantes da vizinhança.

À noite, esgotado, caia no catre e ficava pensando por que tinha sido marcado para ser tão infeliz? Mulher, namorada ou amante, nem pensar, pois se mal me mantinha em pé, como conseguiria apoiar família? Vivia muito perto de fim do poço.

Foi aí que descobri como podia ser ainda mais infeliz e devotar mais tempo para ficar vivo. Uma dor muito forte, que quase me paralisou, fez com que meu vizinho me levasse ao posto de saúde e me fizesse conhecer o câncer do meu dia-a-dia doravante.

Hoje já não eram necessárias seis horas para chegar ao posto de saúde, que havia crescido um pouco e eu chegava lá em duas horas e meio de caminhada, que eram necessárias duas vezes para semana para conseguir remédios e alguns suprimentos da cesta básica. Porém, a doença vinha corroendo a minha capacidade vital e eu via meu entorno se esvaindo no abandono e na falta de moeda de troca com meus vizinhos.
As dores eram insuportáveis quando não vinham incluídos na cesta de remédios os comprimidos de morfina, únicos capazes de me fazer levantar da cama. Mesmo dispondo às vezes de alguns gêneros na despensa, não tinha capacidade de prepará-los e transformá-los em alimentos. Dias melhores eram aqueles que conseguia chegar ao pomar e catar do chão as frutas menos podres.

À noite, a maior parte do tempo com dores e fome, ficava conjeturando como era exigente e reclamava de minha marca de ser pobre e infeliz. Hoje, só penso como era feliz e não sabia.

Frederico Lohmann é arquiteto e consultor

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